Capitu,
microssérie de cinco capítulos exibida pela Rede Globo em 2008, é a
segunda – e, infelizmente, a última – realização do diretor Luiz
Fernando Carvalho para o Projeto Quadrante.
Idealizado por Carvalho, o Projeto
Quadrante pretendia levar adaptações de clássicos da literatura
brasileira ao público da televisão. Cada obra corresponderia a um dos
quatro cantos do país, e seria produzida por profissionais locais,
funcionando também como uma busca por novos talentos fora do eixo
Rio-São Paulo. No entanto, devido aos baixíssimos índices de audiência
de Capitu e A Pedra do Reino (microssérie antecessora baseada na obra de Ariano Suassuna), a emissora suspendeu o projeto por tempo indeterminado.
Luiz Fernando Carvalho, conhecido pela aclamada minissérie Hoje é dia de Maria (2005),
ousou então adaptar uma das obras fundamentais da literatura brasileira
no centenário de morte de seu autor, Machado de Assis.
Escrito em 1899, o romance Dom Casmurro
é considerado por muitos a obra-prima de Machado. O livro já foi
analisado pelo viés sociológico, psicológico, filosófico, teológico,
jurídico e até mesmo feminista. No âmbito literário, muito se discute
acerca de sua estética, pois, apesar de ser considerado o expoente maior
do Realismo no Brasil, o autor rejeitava esse rótulo. Machado chegou
até mesmo a dizer que “a realidade era boa, mas o realismo é que não
servia para nada.”
Essa miscelânea estética que permeia Dom Casmurro
– romântico, realista e modernista ao mesmo tempo – parece ter guiado a
adaptação de Luiz Fernando Carvalho. “Na minha opinião, Dom Casmurro é montado assim, como um conjunto de colagens, de tempos e de avessos”, define o diretor.
A ideia original era não fazer uma
simples reconstituição de época, mas uma releitura que lembrasse o
caráter universal e atemporal da história, e que, por outro lado,
conectasse a trama passada no Brasil do Segundo Império ao Brasil do
século XXI.
Ao desafio de ser universal e brasileira,
fiel à época e atual, somou-se a dificuldade orçamentária da produção.
Assim, a microssérie teve de ser realizada em uma única locação: o
Automóvel Clube do Brasil, antigo palácio em ruínas no centro do Rio de
Janeiro. Pois foi justamente essa limitação que permitiu que Capitu tivesse como conceito fundamental a
máxima de Machado de Assis – na voz do protagonista Dom Casmurro – “A
vida é uma ópera”. A partir disto, Carvalho repensou o livro dentro de
um formato operístico, metalinguístico e não-realista.
Portanto, para ser fiel ao autor e à sua
obra, a microssérie de Luiz Fernando Carvalho inventou – e muito.
Todavia, permaneceram a divisão em capítulos, o texto original e a
narração em primeira pessoa do personagem central do livro.
Seguindo o conceito teatral, a ação se dá
quase sempre na presença de grandes cortinas vermelhas. Na encenação
prevalece não só a ópera – os atores interrompem constantemente sua ação
para “pausas dramáticas” seguidas de uma orquestra, e os canhões de luz
de teatro interagem com as cenas – mas há também forte influência da
estética do expressionismo alemão, sobretudo no uso das sombras, de
enquadramentos tortuosos e na caracterização do protagonista. Outros
recursos amplamente usados para compor a história são a vídeo-projeção e
a montagem com arquivos de um rico acervo imagético do Brasil de 1900.
O
cenário e a indumentária são atemporais, criados em sua maior parte
pelo artista plástico Raimundo Rodriguez, a partir de elementos como
papel alumínio, papel de jornal, canos de ferro, desenhos a giz de
lousa, artesanato em madeira, etc.
Há a constante intervenção de elementos atuais na história, desde a trilha sonora (composta por rock clássico e nacional, folk, música erudita, ópera, marchinhas brasileiras e hip hop), até as poucas cenas externas gravadas no Rio de Janeiro atual, passando por fones de ouvido da Apple, telefone celular, e salas de cinema que ainda não existiam.
Todas
estas opções da adaptação parecem estar voltadas para uma das questões
centrais na obra machadiana: o embate entre verdade e imaginação, entre
realidade e verossimilhança. Afinal, foram as dúvidas insolúveis do
romance que o tornaram tão famoso. O jogo de Machado de Assis com o
leitor permanece então no jogo de Capitu com o espectador. Parece impossível definir o que é verdade e mentira na microssérie.
Os recursos épicos de Capitu não
estão apenas nas incoerências históricas, na exposição da
contrarregragem e do aparato cenotécnico, ou na presença de um narrador
que, a todo momento, dirige-se ao público. O principal elemento épico – e
o mais desconcertante – está na interpretação dos atores, orientados
pelos preparadores de elenco em técnicas de Clown e de máscaras da comédia dell’arte.
A
interpretação brechtiana que comenta e critica o personagem que se está
representando dialoga profundamente com a ironia de Machado, que criava
personagens tipificados para representar e criticar a elite carioca do
século XIX.
Todavia, enquanto tudo em Capitu
parece unir-se para quebrar a ilusão – ou a quarta parede – e despertar a
observação acurada e crítica de Machado no espectador num empenho
claramente épico, os mesmos recursos também colaboram entre si para
criar uma atmosfera onírica e bela, que encanta, entorpece, e comove
profundamente o público na chave dramática, que Brecht rejeitava.
Assim,
concretiza-se na adaptação de Luiz Fernando Carvalho aquilo que há de
mais interessante na obra de Machado e na narração de Dom Casmurro: a
dualidade entre o dramático e o épico. Essa antítese, afinal, já estava
exposta em outra máxima do autor, que definia a vida como “uma ópera
bufa com alguns entremeios de música séria”. São esses “entremeios de
música séria” que emocionam tanto o espectador de Capitu.
É impossível não se comover com os personagens de Capitu,
sobretudo com o drama de Bentinho na velhice. Simultaneamente, é
constante a sensação de ser enganado pelos mesmos. Os personagens
machadianos, os atores, a arte e a direção da microssérie encarnam com
perfeição aquilo que Fernando Pessoa definiu em poema: O Poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente. É desta forma que os limites entre verdade e fingimento surgem tão diluídos na microssérie.
Luiz Fernando Carvalho ressalta que, além dessa dicotomia, o que buscou imprimir à obra foi melancolia.
“Pouco a pouco, veremos que o romance não trata apenas do jogo entre a verossimilhança e a verdade, mas também de um conjunto de retratos repletos de sabedoria melancólica – ligeiramente cansada, ligeiramente amarga, ligeiramente divertida. Fui atrás das coordenadas mais latentes, que têm muito a ver com a questão da passagem do tempo, da consciência da finitude das coisas e do trágico também. Busquei a tragicomédia de uma dúvida, do que ela provoca em termos de imaginação.”
Se à primeira vista a trama parece girar
em torno do possível adultério de Capitu e do ciúme obsessivo de
Bentinho, o tema central revela-se pouco a pouco ao espectador. O tempo,
a finitude e efemeridade das relações são o foco do narrador-personagem
desde o início do romance, quando revela ao leitor o seu intuito ao
escrevê-lo:
“Digamos os motivos que me põem a pena à mão: meu fim evidente era atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência. Pois senhor, não consegui recompor o que foi, nem o que fui. Se só me faltassem os outros, vá lá, um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde. Mas falta eu mesmo. E esta lacuna é tudo.”
Por Giovanna Siqueira
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