sexta-feira, 14 de julho de 2017

Dicas do Capitão - um filme libertador e revigorante - Capitão Fantástico

 fonte: Oglobo

NOVA YORK — A aparente pista falsa do título é proposital, avisa o diretor Matt Ross. Num cenário dominado por filmes de super-heróis, a comédia dramática “Capitão Fantástico”, que chega hoje aos cinemas, não tem nada de “Batman” ou “Homem de Ferro”. O indie é centrado na história de Ben (Viggo Mortensen), que passou uma década com seus rebentos no mato, decidido a colocar em prática ideais de comunhão com a natureza, exuberância atlética e desenvolvimento intelectual. O tom lembra o de “Pequena Miss Sunshine”, e o resultado é tão comovente quanto angustiante.
Os seis filhos sabem de cor a Constituição americana, só comem o que plantam e caçam, discutem a obra de Noam Chomsky e têm ritmo musical apuradíssimo. Mas penam quando, forçados por uma tragédia (a doença terminal da mãe), precisam atravessar o país e entrar em contato com jovens criados de forma convencional.
Numa das cenas mais reveladoras, as crianças se assustam com o número de pessoas obesas em uma típica cidade da América Profunda. Em outra, o filho rebelde se maravilha com os confortos da vida urbana e questiona Ben: “mas o que há de tão errado assim em ser normal?”
— Pensei que este seria mais um filme baseado num super-herói obscuro de histórias em quadrinhos — confessa Viggo. — Comecei a ler o roteiro desconfiado, e achei que era a realização de uma utopia liberal, a família com valores progressistas que enfrenta o mundo conservador com coragem. Segui adiante e vi que era outra coisa, nada maniqueísta, pois aquele pai estava longe de ser perfeito. Amei as nuances e a sofisticação da narrativa, com um só senão. Se o filme fosse meu, acrescentaria, no título, como provocação, um ponto de interrogação.
Indicado a prêmios de melhor ator pelo Globo de Ouro, pelo Sindicato dos Atores, pelo Indie Spirit e pela Associação de Críticos Americanos, Viggo |Mortensen, 58 anos, interpreta Ben com naturalidade ímpar.


Como o personagem do filme, que foi sensação no último Festival de Sundance, ele já viveu em estado de isolamento da sociedade. Foi quando ainda não havia explodido em Hollywood e se mantinha entre um e outro bico, nos cafundós do Idaho. Antes de começar as filmagens, voltou ao cenário de seu período ermitão.
De lá, viajou de carro até o set no estado de Washington, dirigindo uma caminhonete repleta de livros, ferramentas, utensílios domésticos, uma canoa, bicicletas e arremedos de móveis que aparecem no filme. Também trouxe suas composições para serem incluídas na trilha sonora e ajudou a plantar a horta usada para alimentar a trupe. O elenco juvenil, afiado, também foi indicado na categoria de conjunto pelo Sindicato dos Atores.
INQUIETAÇÕES COM PATERNIDADE
Por essas e outras, até o diretor e roteirista Matt Ross diz que seu segundo longa-metragem é tão de Viggo quanto dele. Mais conhecido do público por seu trabalho como ator coadjuvante, em produções como “Psicopata americano” e “O aviador”, Ross estreou na direção em 2012, com o pouco visto “28 hotel rooms”. “Capitão Fantástico” surgiu de suas próprias inquietações com a paternidade. E de seu encontro com Viggo.
‘Sei que é difícil nos dias de hoje, mas queria encontrar atores que de fato acreditassem na utopia de uma educação libertadora, questionadora de nosso status quo’
- Matt RossDiretor de 'Capitão fantástico'
— Executivos e produtores, quando se familiarizavam com o projeto, me diziam: o Ben tem de ser feito por um ator cômico! — conta ele, que venceu este ano o prêmio de melhor direção da competição paralela do Festival de Cannes, Un Certain Regard. — Bati o pé e disse que o filme só funcionaria se o elenco encarasse aquilo tudo com muita verdade. Sei que é difícil nos dias de hoje, mas queria encontrar atores que de fato acreditassem na utopia de uma educação libertadora, questionadora de nosso status quo. Pois Viggo é assim.
O ponto de interrogação no título proposto pelo ator vem imediatamente à cabeça na cena em que o primogênito revela querer ir à faculdade, rompendo assim o ciclo de afastamento da sociedade imposto pelos pais. Ao mesmo tempo em que se debate contra a rigidez das regras do mundo lá fora, Ben impõe a seu clã um dogmatismo às avessas.
— Ele dá tudo de si para as crianças serem cultas, safas, melhores pessoas do que a média e do que ele próprio. Mas, ao mesmo tempo, ele as impede de interagir com outras adolescentes e crianças, um erro gigantesco — pondera Viggo. — Terminei esta jornada com a certeza de que o importante na criação de nossos filhos é menos a busca da perfeição e mais o exercício diário de compreensão de suas individualidades, em busca de um equilíbrio muitas vezes pouco realista, mas sempre desejável.


Não deixa de ser curioso o fato de que o ator nova-iorquino descendente de dinamarqueses, criado na Argentina e morador de Madri, só ter alcançado o estrelato por conta de seu filho. Foi Henry, hoje ator e músico, então com 11 anos, maravilhado com a leitura da trilogia de J.R.R. Tolkien (1892-1973), quem convenceu Viggo a fazer o teste para substituir o irlandês Stuart Townsend e encarnar um certo Aragorn nas versões de “O Senhor dos Anéis” para o cinema.
“NÃO SEI SE CONSEGUIRIA”
A franquia milionária de Peter Jackson abriu outras portas, como o papel principal na adaptação do celebrado “A estrada”, de Cormac McCarthy, e no thriller “Senhores do crime”, de David Cronenberg, com quem também fez “Marcas da violência”, e para o qual foi indicado ao Oscar de melhor ator.
— Não sei se conseguiria criar meu filho no meio do nada, sem celular, mas a experiência de viver com jovens atores encarnando personagens de 7 a 18 anos, por semanas a fio, nessas condições, foi fascinante, e me fez refletir sobre minhas próprias escolhas profissionais e meu lugar no mundo das artes e do entretenimento — diz Viggo, também poeta, fotógrafo, pintor e editor independente, uma profusão de talentos que lhe garante a alcunha, desta vez sem interrogação alguma, de “Capitão Fantástico”.

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