terça-feira, 29 de setembro de 2015

18+ MV Bill e Thaide falam da realidade das periferias e do doc Falcão Meninos do Tráfico


Já faz um tempo que o a Globo mostrou no Fantástico o documentário Falcão - meninos do tráfico, mas parece que foi ontem, pois a realidade das comunidades continua a mesma e as discussões que procuram amenizar a dura realidade de crianças e adolescentes envolvidos com o crime são pouco faladas. A matéria a baixo foi publicada pela revista ÉPOCA em 2009, mas continua tão atual que merece ser lida novamente.

MV Bill e Celso Athayde falam aos leitores de ÉPOCA

Leia outras respostas do rapper e do produtor musical que estão lançando o livro Falcão – Mulheres e o Tráfico

Revista Época

Vocês acreditam que as ONGs são uma saída viável para as comunidades aonde as medidas do governo não chegam? Mariana Machado Bonora, Bauru, SP
Celso Athayde – Não é correto dizer que o governo não chega. Existem muitas iniciativas importantes nas comunidades, escolas, creches... Basta entrar nas favelas e vamos ver várias ações importantes nelas. O problema é que a demanda é muito maior, as ONGs não podem substituir o poder publico, podem ser referências em alguns casos, podem complementar em outros, podem trocar experiências ou mesmo se juntar para atuar em certas ações, mas é o Estado o responsável, isso fecha qualquer discussão. O que entendemos é que certas ONGs que conhecem a realidade das favelas têm uma contribuição maior a dar pois são interlocutores naturais entre o Estado e a favela. Então todos precisam aproveitar esse conhecimento.

MV Bill - É perigoso eu responsabilizar as ONGs pela melhora e pela superação de cada realidade. É difícil, porque até quando crio algum tipo de mobilização, tomo muito cuidado para que a gente não assuma para nós somente uma responsabilidade que é muito acima de nós. Existem pessoas que, inclusive, têm cargos públicos e recebem salários da própria população para cuidarem dessas questões. No entanto, a gente vê que muitos mandatos estão inclinados para outras causas, principalmente as pessoais e particulares. Com esse tipo de realidade, com esse tipo de tratamento ausente, as ONGs acabam tendo um papel fundamental à frente dessas histórias, um papel de costura, principalmente as ONGs que são cria dos próprios locais, das próprias realidades, não as que vem de fora pra dentro. A independência das ONGs não impede que elas possam ter aproximação e até trabalhos em conjunto com os governos federais, municipais e estaduais. Já vi muito acontecer pelo Brasil.
A Globo comprou os direitos autorais da série Falcão - Meninos do Tráfico? Se sim, o que foi feito com o dinheiro? De alguma forma ele foi revertido para melhorar a vida dos jovens da favela?
Sirlei Netto, Petrolina, PE
Athayde – Toda obra da Cufa pertence à Cufa, aos jovens que fazem parte dela. Esse filme não é exceção. A relação com a Globo não envolveu um centavo, e nem era esse o foco. Se eles pagassem, o projeto viraria um produto comercial, eles não queriam e nem nós. Tivemos a chance de passar no cinema e depois tirar onda de documentarista e, aí sim, colocar algum no bolso. Tínhamos que decidir sobre o que queríamos: passar no cinema para uma platéia seletiva e interessante ou para o público sem ganhar um real, mas pautar o país para uma causa que acreditamos ser importante. Pautamos o Brasil e mexemos com a sua cabeça. Depois desse documentário, ninguém será o mesmo, nunca mais. Quanto ao dinheiro, a Cufa está em vinte e cinco estados, e, em muitos deles, em várias favelas. Esse é o destino de qualquer recurso oriundo dessas ações. Nosso patrimônio são as nossas conquistas e a nossa revolução são as nossas realizações.

MV Bill
- Não, a Globo não comprou. Muito pelo contrário, em todo esse projeto, a gente não teve apoio, financiamento, patrocínio de ninguém, de nenhuma empresa. Até porque provavelmente ninguém iria querer ligar seu dinheiro, sua imagem, àquela realidade que até então não tinha sido mostrada. Peguei dinheiro de shows meus e da Nega Giza, juntamos para comprar as filmadoras, compramos computadores que poderiam servir de ilha de edição, e fomos investir naquilo que a gente acreditava que era o certo. E, nas primeiras entrevistas, a gente já identificou que não ganharia dinheiro com isso, somente se vendêssemos a vida das pessoas, que acreditaram e confiaram na gente. E pela confiabilidade, a gente sabia que não ia ganhar dinheiro com aquilo. Decidimos, então, criar uma parceria com a Rede Globo que nos possibilitou falar com 90 a 100 milhões de brasileiros. A causa foi muito mais importante do que qualquer sentimento de vaidade ou interesse financeiro que pudesse pairar sobre nossa cabeça. E nos sentimos muito orgulhosos depois por ter feito com que parte ou todo o Brasil se pautasse para discutir a periferia. Tivemos uma parceria com a Rede Globo, em que a gente utilizou a ilha de edição deles, junto com dois editores deles que são o Frederico e o Cadu, mas a palavra final é sempre minha e do Celso. Finalizamos um material muito legal que era para ser um trailer e acabou virando um documentário de uma hora. A gente tem mais uma hora e meia, inserindo imagens de mulheres e algumas histórias do material audiovisual do livro. E estamos pensando agora mais em cinema do que em televisão. Qualquer coisa que a gente ganha, não só livro como palestras, shows e até quando o documentário foi para as lojas, uma parte disso vai para a Cufa (Central Única das Favelas). Algumas ações nossas são financiadas, mas outras não.

Gostaria de saber o que mais atrai um jovem adolescente no tráfico: o "status" entre os amigos ou o dinheiro? Nara Andrade, São Paulo, SP Athayde – Cada vida é uma, as motivações são variadas, mas acredito que o dinheiro, ou a possibilidade de tê-lo, ainda é a grande responsável por todas as aventuras.
MV Bill - Tem status também. No caso do jovem periférico tem também a sensação de poder – ainda que seja ilusório – e de se sentir responsável por algo. Mas, no geral, continua sendo o dinheiro, ou a esperança de se conseguir o dinheiro.

E o que está mudando no perfil do traficante que volta e meia é da classe média? Nailson Costa, Rio de Janeiro, RJ Athayde – As drogas aproximam as pessoas que têm interesse nela, seja de qual classe for. Dessa forma, a classe média está cada vez mais dentro da periferia e vice-versa.
MV Bill - Tem muitos jovens da classe média que se envolveram com o tráfico, mas tem muitos também que se envolveram com o que se chama de "estica", ou seja, vai no morro comprar a droga e vende no seu condomínio ou na faculdade. E tem os jovens de classe média que são os grandes traficantes de drogas sintéticas, que por muitos são consideradas drogas brandas, por, teoricamente, ainda não estarem sujas de sangue. O que muitas pessoas não sabem é que elas já são traficadas em favelas, como qualquer droga. Em muitas favelas onde eu só ouvia maconha ou pó, agora já escuto, haxixe, crack, cheirinho da loló... O número das drogas só está aumentando. Eles podem ainda não ser especializados no ecstasy, como a playboyzada é. Mas já têm nas bocas de fumo.
O que tem sido feito para mudar a realidade dos meninos que apareceram em Falcão, Meninos do Tráfico? Será que depois desse tempo fora da mídia, alguma mudança real ocorreu na realidade desses meninos e de suas famílias?
Vânia S. Mendonça, Rio de Janeiro, RJ Athayde – Não estamos em todos os lugares para para saber, mas temos notícias de muitas iniciativas importantes pelo Brasil afora, sejam de instituições ou governos. Reconheço que temos que ter paciência, que não vamos resolver em uma semana um problema que vem se agravando há anos, mas temos que ser vigilantes.

MV Bill - De fato, a maioria morreu. Não tem muito o que falar. O único sobrevivente não conseguiu se adaptar à vida fora do crime, a um emprego. Recebeu todo o auxílio do Beto Carrero, mas não conseguiu se adaptar. Hoje ele faz tratamento psicológico e médico contra a abstinência das drogas. Nós estamos auxiliando ainda, ele está no Rio, mas não sei até quando poderemos fazê-lo. O fato de ele não conseguir se adaptar não me surpreendeu. E não me desanimou. Mostrou que o nosso foco etário tem que ser mais jovem ainda. É mais fácil evitar que entre no crime do que depois sair dele. Algumas mães a gente acompanha ainda de perto, e chama a atenção a força que elas têm para evitar que outras mães não sofram o que elas sofreram. Porque a dor de perder um filho não dá para superar.
O que vocês acham da pesquisa da ONU que classificou o Brasil como um dos países em que se melhor vive, mesmo com tanta desigualdade? Roberto Viera, Campo Grande, MS
Athayde – Isso mostra o quanto o problema é universal. Se, apesar de todos esses problemas, uma instituição com a integridade da Unesco afirma isso, é porque não temos que comemorar pelo Brasil, temos que chorar pelo planeta.

MV Bill - O Brasil tem um desnível social gritante. A nossa sorte é que temos um povo manso, adocicado, domesticado, que não se rebela. Quando a pesquisa indica dados como esse, dá um arrepio só de pensar que possa haver lugares muito piores. De qualquer forma, não dá pra se orgulhar dessa situação, porque o Brasil é um país rico, de dimensão continental, mas com uma renda muito mal dividida, com uma minoria com muito e a grande maioria com nada. Dá, sim, é para melhorar muito, pelos recursos naturais, pelo terreno fértil. Só depende do próprio povo. Fui à Nigéria e acredito que seja um dos piores lugares do mundo. Não precisei visitar uma favela porque o país inteiro é uma favela gigante. É contraditório, por ser um dos maiores produtores de petróleo. Indo lá, vejo que o Brasil tinha tudo para ser um paraíso.
O que vocês acreditam que é preciso ser feito e que atitude devemos tomar em busca de um país e um mundo melhor e mais igual? Leonardo Tavares Leite, Niterói, RJ
Athayde – Colocar a culpa nos políticos, no sistema, no governo, é o mesmo que chutar o balde para o alto. Acredito que, se o Brasil se mobilizasse para a tolerância zero com a corrupção, todos os outros problemas estariam resolvidos. A corrupção é o mal de todos os males.

MV Bill - Investir nas coisas básicas. Fala-se tanto na redução da maioridade penal, baseando-se em paises de primeiro mundo. Fui a alguns países de primeiro mundo e a primeira coisa que vi foi que o tráfico também existe. Acabar com ele é uma utopia. Porém tem como diminuir fazendo o que esses países ricos já fazem: investir pesado em educação e saúde. No nosso país, os dois itens são artigos de luxo, temos que pagar caro para tê-los. Sem isso, o Brasil fica inviabilizado. Não tem milagre. É investir em nosso próprio povo, nossa maior riqueza.
Qual seria a melhor forma de aumentar a qualidade do ensino da rede pública no país em um espaço de tempo curto?
Vagner Oliveira Pimentel Pereira, Salvador, BA Athayde – Incentivar que os alunos leiam, durante os anos letivos, o que eles querem. Em geral, eles são obrigados a ler o que os velhinhos da educação escolhem. Ninguém lê algo só porque é de graça. As pessoas lêem o que gostam. Esse é um dos fatores. Claro que existem outros milhões, pensados por quem trabalha com educação. Eu sou apenas um semi-alfabetizado.

MV Bill - Eu não sei em qual espaço de tempo, mas precisamos qualificar melhor os professores e pagá-los melhor. Muitos têm que dar aulas em três, quatro escolas diferentes para sustentar sua famíli. Dessa forma, eles não conseguem dar a atenção devida a cada aluno, não conseguem entender porque ele tem dificuldade de aprendizado. Quando se fala em educação, infelizmente não há curto prazo. Curto prazo em educação acaba virando aprovação automática ou qualquer desses caminhos tortos que acabam sendo um desserviço.
Intelectuais afirmaram que "Falcão - Meninos do Tráfico" explora a miséria para lucrar e que artistas como Racionais e Consciência Humana não precisam expor as desgraças da periferia para fazer sucesso. Tiro, morte, tráfico, estupro fazem parte da maioria das letras. No raciocínio desses intelectuais, esses artistas estariam explorando a miséria das favelas para ganhar dinheiro. Vocês concordam com isso? Fernando Corrêa do Carmo, São Paulo, SP Athayde – Não vejo nenhuma incoerência nisso. Enquanto nós, que somos parte desse caos, estivermos contando o nosso cotidiano, é saudável e, quando conseguimos alguma grana com isso, muito bem. E se, por ventura, alguns de nós devolverem para esse mesmo caos algum alento a partir de trabalhos sociais, é melhor ainda. Mas esses intelectuais devem achar normal e produtivo as favelas e a sua realidade sendo retratadas por eles, como sempre foi. Devem achar melhor que nossas histórias sejam contadas em seus filmes, de preferência com renúncia fiscal, ou seja, dinheiro de todos. Esse modelo é que deve ser certo para os intelectuais. A arte não pode ser associada à exploração, o problema é que, para os asfaltistas, o que nós fazemos nunca é arte, é crime. Tenho a impressão de que, a partir do momento em que as comunidades começaram a se organizar e a contar suas próprias histórias, sejam elas tristes ou alegres, automaticamente eliminamos esses atravessadores. Eles, sim, exploradores da miséria alheia. A única coisa que nos sobrou foi a miséria e, então, temos o direito de ganhar dinheiro com ela e, quem sabe, diminuir seu efeito.
MV Bill - Eu, falando por mim e não pelo hip-hop, não vejo contradição nisso. Até porque a periferia, quando usa a arte para falar da realidade, fala das suas histórias felizes e tristes. E é a minha realidade. Não sou o cara que fiz faculdade fora e voltei para estudar a vida dos favelados. Sou parte dessa realidade. Não vejo contradição nisso. Vejo, sim, quando gente de fora, na maioria muitos desses intelectuais, entram nas comunidades, fazem sua tese de mestrado, livros, matérias de jornal e TV, e não há nenhuma contrapartida.
O filme Tropa de Elite responsabiliza o usuário de drogas pela violência que atinge a sociedade. Na música “O Bagulho é doido” você também faz tal responsabilização. O filme respondeu às suas expectativas a respeito da realidade? José Elias Aiex Neto, Foz do Iguaçu, PRMV Bill - Olha só, falando especificamente do filme, acho que é um filme importante e interessante que acaba servindo também como mais um instrumento que ajuda a pensar a realidade brasileira. Talvez o único erro, na minha avaliação, é a produção chamar aquilo de ficção quando todo mundo sabe que aquilo é a realidade. O livro tem uma realidade mais pesada e a realidade é mais pesada que o livro e que o filme, então é mais uma obra complementar. Porém, quando a gente fala do usuário, a gente está querendo mostrar que todo mundo que usa as drogas deve ter a consciência de que parte do seu consumo pode estar vindo com a vida de alguma pessoa. Mas, por outro lado, acho que ele não deve ser o único criminalizado por conta disso. Seria até meio demagogia, já que existem outras coisas muito maiores que acabam fomentando uma criminalidade. Não é somente o usuário que ajuda nisso, mas ele também não pode escapar da responsabilidade. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário